Black Buffalo Publishing

Capítulo Um: Owl Knight

Gotas de uma longa e cansada chuva batem contra a janela. Um homem de óculos, de olhar fundo e alma gasta, toca o vidro como se quisesse atravessar. Do lado de fora, a cidade agoniza em silêncio. O frio não só chegou — ele se instalou.

O homem veste suas roupas lentamente, como quem carrega o peso do mundo nos ombros. Arruma a cama com disciplina. Para por um momento, encara um pequeno quadro. Nele, uma criança sorridente está ao lado de um homem mais jovem e uma mulher loira com um sorriso de quem ainda acreditava na vida.

— Eu sinto sua falta, Elisa… Todos os dias eu sinto a sua falta.

Seu dedo toca a imagem da mulher. Um carinho lento, fantasma, como se aquele gesto pudesse trazê-la de volta. Então, ele se afasta. Sai do quarto. Vai até o banheiro. Escova os dentes com movimentos automáticos. Por um instante encara o espelho. O rosto está inchado. Ferido. Ele fecha os olhos por um breve momento. Do lado de fora, um barulho seco interrompe o silêncio.

Ele sai do banheiro, ainda com a escova na mão, e grita:

— Quem tá aí?

— Sou só eu, pai… tô indo pegar um copo d’água… e o senhor?

— Tá certo. Qualquer coisa, me liga. Vou sair. Dar uma volta. Ver se a cidade não morreu de vez.

Volta ao banheiro, cospe a espuma, limpa o rosto com um pano que já viu dias melhores. Encara o espelho. Tenta se lembrar do homem que já foi. Nada.

Sai do banheiro. Vai até o porão. Tranca a porta. Tira as roupas. O corpo cansado agora veste o que restou da fé: um traje amarronzado, sujo, com um elmo em forma de coruja. A capa envolve seu torso como uma mortalha. Ajusta o fecho. Confere a tranca. Sai.

Na rua, o mundo parece calmo demais. Silêncio onde deveria haver buzinas. As calçadas estão vazias. Sem mendigos. Sem prostitutas. Sem gritos. A cidade, antes selvagem, agora sussurra. E isso o assusta mais do que qualquer explosão.

Ele caminha até um bar. A placa de neon vermelho ainda pulsa: “Covil da Coruja”. Lá dentro, o vazio domina. Nem um bêbado. Só Paul. Sempre ele. Um atendente que já desistiu de tentar sair da própria história.

— O que veio fazer aqui, Osíris? Alguma investigação?

— Não, Paul… só vim conversar. Sem máscara, sem plano, sem missão. Só conversar.

Paul sorri com tristeza, como quem entende.

— Ainda remoendo aquele dia?

Ele limpa um copo e senta ao lado de Osíris.

— Sim… Elisa se foi há tempo. Mas ela ainda pesa. O Lucas… ainda tenta entender o que aconteceu. Ele ainda acha que tudo foi um sonho ruim.

— Eu sei, cara… mas, sinceramente? Uma hora ou outra ia acontecer. Epcia não é mais como antes. A polícia ficou pior. O crime mais sujo. Você ainda tenta fazer a coisa certa, mas o mundo não dá mais espaço pra isso. A Elisa… ela foi vítima de uma cidade que não perdoa.

Osíris escuta. E sabe que é verdade.

— Você tem razão, Paul. Mas preciso ir. Não posso sentar num bar com essa roupa e achar que ninguém vai perceber. Até você corre risco.

Ele levanta. Coloca a mão no ombro do amigo. Agradece com o olhar. Sai. A porta fica entreaberta.

Na calçada, um som. Um beco à direita. Três garotos bêbados cercam um velho. Riem enquanto chutam o corpo no chão.

Osíris corre. A capa se abre como um grito mudo. Chega com a fúria de quem cansou de ver injustiça. Derruba o primeiro com um soco. O segundo com o cotovelo. O terceiro foge sem olhar pra trás.

Ele ajuda o velho a levantar.

— Está tudo bem? Levaram algo?

— Não… só me assustaram. É a juventude, sabe? Eles tão putos com o Heyward. A polícia bate. Eles batem de volta. Tudo virou espelho.

O velho ri, cuspindo sangue entre os dentes. Osíris só observa.

— O senhor tem razão… Vivemos em tempos quebrados. E respostas quebradas são tudo o que temos.

Dá dois tapinhas nas costas do velho. Segue.

Chega até um prédio imponente, formato de “L”, de vidro e metal. Um monumento ao ego.

Pula a cerca metálica. Olha pra cima. Uma escada o espera.

— Que tipo de filho da puta constrói um prédio com a inicial do próprio nome? Ego… puro ego.

Sobe degrau por degrau. A chuva castiga cada passo. No topo, uma entrada falsa. Ele força. Entra. Um salão dourado se abre como uma boca de leão. No centro, sentado como um rei moderno, está Longinus.

— O que te traz aqui dessa vez, Cavaleiro?

— Uma das suas gangues ainda tá ativa na Zona Leste. Eu quero saber por quê. Já deveria estar tudo em silêncio.

— Ah, Osíris… Justiça me absolveu. Sem provas, sem crime. Você, por outro lado, está invadindo propriedade privada. Isso dá processo.

Longinus sorri. Seguro. Frio.

— Você não vai cooperar. De novo. Mas vamos ver até quando consegue fingir que é só um vendedor.

Osíris se vira. Sai pelo mesmo caminho. Chega às escadas. Mas não desce. Pula. A capa se abre como asas. Ele plana. Some na noite.

No telhado de um prédio vizinho, observa um garoto se aproximar de um carro conversível. O moleque olha pros lados. Ajoelha. Tenta tirar a calota.

Uma sombra surge atrás dele.

— Se eu fosse você, não faria isso.

O garoto vira lentamente. A chuva escorre pelo rosto. Ele vê. Um homem. Um vulto. Um símbolo.